sexta-feira, junho 22, 2007

A PROPÓSITO DE MIGUEL TORGA (e da escolha do Rui Guerra)

Este excerto do Vol. XVI do Diário, a propósito da consumada intenção do Montepio Geral, proprietário do edifício onde, no 1.º andar de um prédio do Largo da Portagem em Coimbra, se encontrava o humilde consultório do médico otorrinolaringologista, Adolfo Rocha, em fazer obras e aumentar o rendimento capitalista do banco, diz bem da ombridade da alma do poeta e escitor que, como o definiu José Mattoso era "um modelo priveligiado da construção da identidade nacional".

Vale a pena ler :
- Visita fúnebre de dois administradores do banco, meu senhorio do consultório. Querem-me na rua, para fazer obras no prédio e aumentar o rendimento. Pareciam fantasmas agoirentos a anunciar-me ainda em vida o meu enterro e o meu passado. O capitalismo é assim: não hesita, nem mesmo diante de um leito de sofrimento. E lá os ouvi de coração alanceado, a argumentar a gaguez do espanto vencido. No fim da entrevista, em que levaram a melhor, apeteceu-me chorar de desespero. Naquele velho refúgio, que vai ser demolido e remodelado, estão muradas a minha vida e outras vidas. Das duas janelas que lhe davam luz, prespectivei durante meio século o mundo e as tragédias dele. Ali enxuguei muitas lágrimas, resisti a muitas tentações, remendei até onde pude erros da natureza, ouvi as mais íntimas confidências, sonhei, acudi a muitas aflições, dei o melhor de mim. E ali ia ser agarmassado e estucado conevientemente para sempre o esquecimento.

Alguns dias mais tarde, em Junho de 1992, Miguel Torga volta a referir-se ao consultório do Largo da Portagem em Coimbra:

- Desfiz-me do consultório. Mil circunstâncias adversas conjugaram-se encarniçadamente nesse sentido. E adeus meu velho reduto, onde durante anos lutei como homem, médico e poeta. Ofereci o material cirúrgico ao Hospital da Misericórdia em que durante anos operei, e o mobiliário à Junta de Freguesia de S. Martinho. E fiquei naquelas salas vazias vazio como elas. Sem passado, sem presente e sem futuro, com a minha própria vida abolida no tempo: À medida que os carregadores iam retirando o espólio, tinha a sensação de que estava a ser descarnado, a tornar-me humanamente espectral. No fim, estonteado, com o chão a fugir-me debaixo dos pés, sem um banco sequer para me sentar, ainda o telefone tocou. Do lado de lá do fio pediam-me que juntasse ao despojos a tabuleta. Respondi que sim, que iria ser arrancada e seguiria. E perguntei, de voz estrangulada, se queriam que mandasse também o meu cadáver.

1 comentário:

Gaspas disse...

Ainda ontem lá fui levantar o vil metal, a esse Montepio do Largo da Portagem, que do médico, escritor e poeta parte da vida arrancou.
Se eu soubesse...

Belo texto